Os desafios do planejamento urbano
- André Bianche
- 12 de dez. de 2019
- 4 min de leitura
Atualizado: 23 de fev. de 2021
A revisão do plano diretor trazendo novas orientações e oportunidades para a cidade de Queimados-RJ.
Era um desafio de proporções inimagináveis.
O trabalho exigiria muito mais do que as ferramentas técnicas adquiridas no maravilhoso e perfeito mundo acadêmico. Exigiria, em primeiro plano, uma habilidade político-diplomática que nem mesmo eu acreditava possuir.
Aos poucos fui percebendo, com certo desconforto, que as ferramentas básicas necessárias seriam mais facilmente encontradas em Maquiavel do que em Gehl, assim como o “flâneur” de Boudelaire e Benjamin traria mais contribuições ao extenuante trabalho que se iniciava do que a brilhante referência teórica de Milton Santos.
De qualquer forma, o desafio autoproposto era extremamente estimulante e trouxe consigo as numerosas e intermináveis noites de insônia, assim como as consequentes improdutivas manhãs mal-humoradas. Que o digam as pessoas que se prontificaram bravamente a estar comigo nessa empreitada.
O trabalho consistia na revisão, com um atraso de dois anos, da Lei máxima da Cidade de Queimados, o Plano Diretor, elaborado em 2006 por uma incrível e enxuta equipe multidisciplinar, da qual tive o privilégio de participar.
As dificuldades se iniciaram com a coleta de dados para o diagnóstico. Mais do que garimpar fontes entre arquivos analógicos imprecisos e subjetivos, foi necessário um trabalho minucioso para descobrir e dissipar possíveis máscaras, intencionais ou não, nos dados que se apresentavam. O fato de ser cidadão Queimadense, nascido na saudosa Maternidade Bom Pastor, trouxe, certamente, alguns benefícios, assim como a condição de técnico em meio ao pequeno mundo institucional com base quase exclusivamente política pode ter garantido uma certa permeabilidade em todos os meios.
A falta de recursos financeiros da administração municipal associada a uma política de prioridades que ao privilegiar as ações mais práticas, de imediata visibilidade popular, delegam ao planejamento urbano um inconcebível e desconfortável segundo plano, uma realidade que atormenta, em maior ou menor grau, os municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro na sua totalidade. As gravíssimas consequências são visíveis a olho nu pelas cidades.
No caso de Queimados, a postergação por anos do processo de contratação de empresa técnica para a revisão do Plano diretor adiou perigosamente o cumprimento à determinação do Estatuto das cidades que prevê o intervalo máximo de dez anos entre as revisões do plano diretor e trouxe como resultado a proposta de utilização de um modelo que se apresentava como única opção viável: O objetivo era lançar mão dos recursos próprios da prefeitura para a elaboração da necessária revisão. As instalações da pequena Secretaria de Urbanismo serviriam como base para os trabalhos e a equipe técnica multidisciplinar seria formada por pessoas cedidas pelos mais diversos órgãos municipais durante o tempo em que durassem os trabalhos. Tal decisão resultou na economia de uma pequena fortuna aos cofres públicos.
Companheirismo e envolvimento foram a base para o sucesso
A equipe técnica foi um capítulo à parte. Pessoas apaixonados por suas áreas de atuação dedicavam suas sextas-feiras à deliciosa tarefa de se apaixonarem pelas áreas das outras, num companheirismo exemplar. Sim, companheirismo, no mais estrito sentido da palavra. Pessoas que mesmo completamente envolvidas no planejamento da cidade, com capacidade técnica inquestionável, exercitaram a mais decente e pura humildade ao ouvir cada detalhe de cada opinião emitida, formulando um denso e volumoso material de diagnóstico da cidade, que resultou num projeto de lei que supomos refletir, verdadeiramente, os anseios e vocações municipais. Entretanto, o melhor legado desse trabalho terá sido, sem sombra de dúvidas, a amizade que se fortaleceu nesse maravilhoso período.
A confiança depositada pelos dois últimos prefeitos, grandes amigos e apoiadores do trabalho desenvolvido ao longo de anos, as amizades que encontrei entre gestores das diversas pastas, assim como o apoio quase unânime dos vereadores e vereadoras, com quem pude contar durante todo o processo, desde a concepção da louca ideia de realizar tão difícil missão com recursos exclusivamente “caseiros” até a aprovação com uma inesperada unanimidade na Câmara municipal, serviram de estimulante para vencer os momentos difíceis.
A participação popular se deu através de fóruns e inúmeras reuniões com entidades de diversos setores. Religiosos, comerciantes, empresários, políticos, educadores, estudantes, ativistas, esportistas, entre outras classes de cidadãos, se apresentaram com suas propostas e opiniões, acrescentando dados e legitimando as ações e propostas contidas nos diagnósticos e no projeto de lei.
A Lei Complementar aprovada regulamenta ou prepara a regulamentação para a utilização dos instrumentos urbanísticos previstos no estatuto das cidades, refletindo os conceitos básicos da constituição cidadã de 1988, reafirmando a função social da terra, com avanços reais no zoneamento com zonas de interesse social que facilitarão a inclusão de Queimados nos programas de Habitação de interesse social em todas as esferas de governo. Traz também avanços na priorização dos transportes ativos como base para a modernização dos conceitos de mobilidade urbana, seguindo os exemplos de boas práticas aplicadas com sucesso nas mais bem-sucedidas cidades contemporâneas mundiais. Oferece ainda novidades estruturantes no sentido da integração metropolitana como base para o desenvolvimento municipal.
O legado do atual Plano Diretor municipal de Queimados poderá ser sentido gradativamente no decorrer dos próximos anos, desde que sejam respeitadas as suas determinações em todas as políticas públicas implementadas na cidade.
Fica o sentimento de gratidão e respeito a todas as pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, desde as primeiras conversas com a equipe da Semur, passando pela formação da comissão, coleta e compilação de dados técnicos, elaboração e revisão do texto do projeto de lei, até a aprovação final na Câmara. Não cometerei a leviandade de tentar citar o nome cada pessoa envolvida no processo, muito menos tentar avaliar o grau de importância de cada participante nesse processo vitorioso.
Deixo aqui o meu agradecimento a todas as pessoas e à prefeitura de Queimados pela oportunidade de participar desse projeto incrível.

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